277 - Serpa minha terra

Nos idos de 70 do século passado comprei para oferecer ao meu pai no dia dos seus anos um livro que muito me tinha emocionado ao ler. Era de: Antunes da Silva, Jornalista e escritor e intitulava-se "O Alentejo é sangue" a páginas 123 há um trecho que diz assim, intitulado:

Em Terras de Serpa
Encontramo-nos na região dos largos espaços, ponteados de lume. Passante a serra, vê-se a Espanha em riscos quase brumosos, e corre ali adiante, alargando os braços como um caminheiro impenitente, o rio Guadiana, manso, a caminho do mar. Este doce rio, que é amigo dos ventos e se embebeda de sol, e se irrita nos dias bárbaros de Inverno, cachoando, atravessa a raia como se fosse um contrabandista disfarçado de cigano. Chega a Serpa já adulto, com boa corrente, mas reprime o curso do seu andamento com a planície.
No local pitoresco do «Pulo do Lobo» o panorama é agreste e ascalvado. Os arvoredos novos erguem-se, abundantes, para as bandas da serra; na vila os prédios, as numerosas igrejas, as chaminés de reminiscências árabes, fazem lembrar um pouco a cidade de Évora, posta mais acima, no coração da província.
No altinho da Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, cercada de tojos e alandroeiros, observa-se uma vista imponente: a terra mandando recados ao céu, na linguagem macia da solidão. Em baixo da igrejinha branca, por baixo de três léguas de comprimento desdobram-se os famosos barros de Serpa, fortes e dadivosos, a caminho da fronteira, rendados de riquíssimos olivedos até às encostas da serra, onde o terreno é mais pobre e remendado. Na parte sul, correndo em direcção a Beja, Mértola e Ervidel, vê-se uma das parcelas da imensa planície alentejana, lugar das grandes lavouras vivendo à torreira do sol, nos dias ainda escaldantes deste princípio de Outono, onde nem as flores vicejam, a não ser a brava esteva. Ao fim, é o horizonte nevoento das montanhas algarvias e em dias claros de Primavera avista-se Vila Real de Santo António e a mancha imprecisa do mar-oceano. Tanto assim, que os pescadores algarvios, quando abalam para as fainas da pesca, acenam simbolicamente dos seus barcos com lenços, ou erguendo os braços, para o minúsculo altinho onde fica Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira dos aflitos.
Junto à ermida, existe um hotel-pousada e uma estrada de primeira classe. Aqui vêm, de passagem para Espanha, turistas de todo o lado do globo, que entram na delicada igreja e rezam com fervor, ou ficam cá fora, no adro, os que não são católicos, a sorver o ar puro da altitude, e a subir a um miradouro para desfrutarem o panorama epopeico da terra.
Pelas paredes caiadas de branco há escritos com petições a Nossa Senhora, como por exemplo, estes, de singular candura: Nossa Senhora de Guadalupe, salva o meu pai da morte que é ele quem dá sustento à casa! Ou então: Nossa Senhora de Guadalupe, permite que o meu irmão venha de Timor, para a gente o abraçarmos! E outras inscrições, de simples anúncio de presença: Aqui esteve Manuel Paizinho, há trinta anos nascido na nobre vila de Moura, a pedir paz para Portugal! E esta dos encantos do amor: Aqui esteve Zé Pinto e sua namorada Helena Verdocas, a pedirem a Nossa Senhorasaúde para se casarem.
Olivais de fama com dezenas de anos de idade, e outros que estão nascendo à flor dos barros primorosos, rodeiam Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira dos aflitos, no alto da serra de Serpa.
Furando o silêncio potentoso da noite muçulmana, cantam dois serpenses uma moda em louvor das estrelas. Os seus vultos recortam-se ao longo de uma rua de casas caiadas de branco. Ouvem-se as suas vozes asseadas na calidez da noitaça, roubando poesia às sombras e a pouco e pouco as cantigas sobem de volume, arrastam outras vozes, forma-se um rancho coral de genuínos cantadores de lendas e martírios:

Ó Serpa, pois tu não ouves
Os teus filhos a cantar?
Serpa ouve muito bem, e às janelas assomam cabeças humanas, dando as boas-noites à melodia.
Estamos no coração do Folclore alentejano, nos lugares acolhedores onde se murmuram as canções da saudade e do autêntico amor português à terra e à grei:
Enquanto teus filhos cantam
Tu, Serpa, deves chorar….
Não chora, mas cisma. Serpa é uma vila de casas de muita história. As crianças entoam cantigas ao poial das casas, ou em qualquer recanto da vila. Cantam também os adultos serenas melopeias arrancadas à quietude da terra.
Mulheres embiocadas em lenços de algodão ouvem as estrofes dos seus homens e acompanham-nos em surdina. Desde Ficalho, ao rés da raia, até à linda vila de Moura, Pias, Santo Aleixo da Restauração, Castro Verde, Amareleja e Aldeia Nova de São Bento, os camponeses cantam o seu destino vário, em versos de esperança e de angustia, de alegria e tristeza, cantam por vocação e por necessidade.
Às quatro da manhã, ainda não tinha rompido a bela aurora, uma voz perdida inicia um canto mavioso:
Já lá vai a nau prás Indias
Já lá vão os navegantes…
É um poema de harmonia a música desta moda. No silêncio perfeito da madrugada responde o rancho de almocreves, em companhia de duas puras vozes femininas:

Choram as mães pelos filhos
E os filhos pelas amantes….
Quebra o enguiço do calor, que toda a tarde durou, o bruxedo das cantigas. Dá vontade de chorar e de sorrir, ao mesmo tempo. O cante alentejano ouvido pela telefonia perde, porém, quase toda a sua grandeza épica. Aqui, sim, na própria raiz donde a sensibilidade se transfigura e desentranha em vida fulgurante, se evolam para o espaço e entram direitinhos no coração do povo os castos versos do amor e da saudade:

Dei um ai entre dois montes
Responderam-me as montanhas
Ai de mim que já não posso
Sofrer de ânsias tamanhas…

Terras de Serpa ao luar! Serpa bebendo água nas lágrimas cetinosas so rio Guadiana! Serpa dos restolhos e dos olivedos, Serpa das grandes lavouras, das rimas inesperadas e dos poetas – que vais cantar amanhã?
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Havia já uns anos que tanto eu como minha irmã tinha-mos saído de Serpa, à que regressávamos pelo menos 3 vezes por ano. Em mim as saudades ainda apertavam e no calor da emoção respondi assim, à pergunta feita no livro pelo escritor:

Como pode cantar Serpa
Amanhã ou noutro dia
Se os seus filhos vão para longe
E com eles a alegria!

Ao terminar de ler o meu pai agarrou-se a mim e ambos choramos, eu porque sentia de facto a quadra que escrevera, meu pai porque sentia na pele a ausência das suas filhas, ambas a trabalhar em Lisboa. Nunca mais me esqueci dos olhos do meu pai cheios de lágrimas e depois da sua morte trouxe para minha casa o livro que até hoje me acompanha.
Hoje ao transcrever aqui estas belas páginas é na intenção de as dedicar aos meus amigos: Xica que me vai mandando fotos da “minha Serpa”, Manuel Gudelha, porque sei ser este um dos seus livros preferidos e ao meu amigo Shark, que adoptou Serpa como sua terra, tanto bem lhe
quer.
É assim que hoje me sinto, nostalgica, depois de ter feito ontem, uma visita rápida a Serpa.

3 comentários:

XICA disse...

Verdadeiramente belo, emocionante e....... não tenho palavras, depois do misto de sentimentos aflorados pela escrita, a tua e a do autor do livro.
Nos olhos fica o brilho das lágrimas incontidas da emoção forte.
Susete, Serpa é, mas Serpa também se faz, pelas mãos de grandes homens como o que lá temos a trabalhar.
Besitos Amiga

XICA disse...

Susete, esqueci de te dizer que a moda referida no texto " Ó Serpa, pois tu não ouves....", é a minha preferida e cantada pelos grupos corais de Serpa, é algo de indescrítivel.

Susete Evaristo disse...

E eu não sei amiga, Serpa de hoje não tem nada aver com a Serp de hoje e por muito que queiram negar só um homemcom a visão e a sensibilidade do João Rocha conseguia alterar o que havia para alterar manter o que é pra manter e dar a voltacultural que hoje se vê.
Mas é o que tu dizes Serpa é e será sempre uma linda terra.
Beijinhos