Nos idos de 70 do século passado comprei para oferecer ao meu pai no dia dos seus anos um livro que muito me tinha emocionado ao ler. Era de: Antunes da Silva, Jornalista e escritor e intitulava-se "O Alentejo é sangue" a páginas 123 há um trecho que diz assim, intitulado:
Em Terras de Serpa
Encontramo-nos na região dos largos espaços, ponteados de lume. Passante a serra, vê-se a Espanha em riscos quase brumosos, e corre ali adiante, alargando os braços como um caminheiro impenitente, o rio Guadiana, manso, a caminho do mar. Este doce rio, que é amigo dos ventos e se embebeda de sol, e se irrita nos dias bárbaros de Inverno, cachoando, atravessa a raia como se fosse um contrabandista disfarçado de cigano. Chega a Serpa já adulto, com boa corrente, mas reprime o curso do seu andamento com a planície.
No local pitoresco do «Pulo do Lobo» o panorama é agreste e ascalvado. Os arvoredos novos erguem-se, abundantes, para as bandas da serra; na vila os prédios, as numerosas igrejas, as chaminés de reminiscências árabes, fazem lembrar um pouco a cidade de Évora, posta mais acima, no coração da província.
No altinho da Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, cercada de tojos e alandroeiros, observa-se uma vista imponente: a terra mandando recados ao céu, na linguagem macia da solidão. Em baixo da igrejinha branca, por baixo de três léguas de comprimento desdobram-se os famosos barros de Serpa, fortes e dadivosos, a caminho da fronteira, rendados de riquíssimos olivedos até às encostas da serra, onde o terreno é mais pobre e remendado. Na parte sul, correndo em direcção a Beja, Mértola e Ervidel, vê-se uma das parcelas da imensa planície alentejana, lugar das grandes lavouras vivendo à torreira do sol, nos dias ainda escaldantes deste princípio de Outono, onde nem as flores vicejam, a não ser a brava esteva. Ao fim, é o horizonte nevoento das montanhas algarvias e em dias claros de Primavera avista-se Vila Real de Santo António e a mancha imprecisa do mar-oceano. Tanto assim, que os pescadores algarvios, quando abalam para as fainas da pesca, acenam simbolicamente dos seus barcos com lenços, ou erguendo os braços, para o minúsculo altinho onde fica Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira dos aflitos.
Junto à ermida, existe um hotel-pousada e uma estrada de primeira classe. Aqui vêm, de passagem para Espanha, turistas de todo o lado do globo, que entram na delicada igreja e rezam com fervor, ou ficam cá fora, no adro, os que não são católicos, a sorver o ar puro da altitude, e a subir a um miradouro para desfrutarem o panorama epopeico da terra.
Pelas paredes caiadas de branco há escritos com petições a Nossa Senhora, como por exemplo, estes, de singular candura: Nossa Senhora de Guadalupe, salva o meu pai da morte que é ele quem dá sustento à casa! Ou então: Nossa Senhora de Guadalupe, permite que o meu irmão venha de Timor, para a gente o abraçarmos! E outras inscrições, de simples anúncio de presença: Aqui esteve Manuel Paizinho, há trinta anos nascido na nobre vila de Moura, a pedir paz para Portugal! E esta dos encantos do amor: Aqui esteve Zé Pinto e sua namorada Helena Verdocas, a pedirem a Nossa Senhorasaúde para se casarem.
Olivais de fama com dezenas de anos de idade, e outros que estão nascendo à flor dos barros primorosos, rodeiam Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira dos aflitos, no alto da serra de Serpa.
Furando o silêncio potentoso da noite muçulmana, cantam dois serpenses uma moda em louvor das estrelas. Os seus vultos recortam-se ao longo de uma rua de casas caiadas de branco. Ouvem-se as suas vozes asseadas na calidez da noitaça, roubando poesia às sombras e a pouco e pouco as cantigas sobem de volume, arrastam outras vozes, forma-se um rancho coral de genuínos cantadores de lendas e martírios:
No local pitoresco do «Pulo do Lobo» o panorama é agreste e ascalvado. Os arvoredos novos erguem-se, abundantes, para as bandas da serra; na vila os prédios, as numerosas igrejas, as chaminés de reminiscências árabes, fazem lembrar um pouco a cidade de Évora, posta mais acima, no coração da província.
No altinho da Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, cercada de tojos e alandroeiros, observa-se uma vista imponente: a terra mandando recados ao céu, na linguagem macia da solidão. Em baixo da igrejinha branca, por baixo de três léguas de comprimento desdobram-se os famosos barros de Serpa, fortes e dadivosos, a caminho da fronteira, rendados de riquíssimos olivedos até às encostas da serra, onde o terreno é mais pobre e remendado. Na parte sul, correndo em direcção a Beja, Mértola e Ervidel, vê-se uma das parcelas da imensa planície alentejana, lugar das grandes lavouras vivendo à torreira do sol, nos dias ainda escaldantes deste princípio de Outono, onde nem as flores vicejam, a não ser a brava esteva. Ao fim, é o horizonte nevoento das montanhas algarvias e em dias claros de Primavera avista-se Vila Real de Santo António e a mancha imprecisa do mar-oceano. Tanto assim, que os pescadores algarvios, quando abalam para as fainas da pesca, acenam simbolicamente dos seus barcos com lenços, ou erguendo os braços, para o minúsculo altinho onde fica Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira dos aflitos.
Junto à ermida, existe um hotel-pousada e uma estrada de primeira classe. Aqui vêm, de passagem para Espanha, turistas de todo o lado do globo, que entram na delicada igreja e rezam com fervor, ou ficam cá fora, no adro, os que não são católicos, a sorver o ar puro da altitude, e a subir a um miradouro para desfrutarem o panorama epopeico da terra.
Pelas paredes caiadas de branco há escritos com petições a Nossa Senhora, como por exemplo, estes, de singular candura: Nossa Senhora de Guadalupe, salva o meu pai da morte que é ele quem dá sustento à casa! Ou então: Nossa Senhora de Guadalupe, permite que o meu irmão venha de Timor, para a gente o abraçarmos! E outras inscrições, de simples anúncio de presença: Aqui esteve Manuel Paizinho, há trinta anos nascido na nobre vila de Moura, a pedir paz para Portugal! E esta dos encantos do amor: Aqui esteve Zé Pinto e sua namorada Helena Verdocas, a pedirem a Nossa Senhorasaúde para se casarem.
Olivais de fama com dezenas de anos de idade, e outros que estão nascendo à flor dos barros primorosos, rodeiam Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira dos aflitos, no alto da serra de Serpa.
Furando o silêncio potentoso da noite muçulmana, cantam dois serpenses uma moda em louvor das estrelas. Os seus vultos recortam-se ao longo de uma rua de casas caiadas de branco. Ouvem-se as suas vozes asseadas na calidez da noitaça, roubando poesia às sombras e a pouco e pouco as cantigas sobem de volume, arrastam outras vozes, forma-se um rancho coral de genuínos cantadores de lendas e martírios:
Ó Serpa, pois tu não ouves
Os teus filhos a cantar?
Serpa ouve muito bem, e às janelas assomam cabeças humanas, dando as boas-noites à melodia.
Estamos no coração do Folclore alentejano, nos lugares acolhedores onde se murmuram as canções da saudade e do autêntico amor português à terra e à grei:
Estamos no coração do Folclore alentejano, nos lugares acolhedores onde se murmuram as canções da saudade e do autêntico amor português à terra e à grei:
Enquanto teus filhos cantam
Tu, Serpa, deves chorar….
Tu, Serpa, deves chorar….
Não chora, mas cisma. Serpa é uma vila de casas de muita história. As crianças entoam cantigas ao poial das casas, ou em qualquer recanto da vila. Cantam também os adultos serenas melopeias arrancadas à quietude da terra.
Mulheres embiocadas em lenços de algodão ouvem as estrofes dos seus homens e acompanham-nos em surdina. Desde Ficalho, ao rés da raia, até à linda vila de Moura, Pias, Santo Aleixo da Restauração, Castro Verde, Amareleja e Aldeia Nova de São Bento, os camponeses cantam o seu destino vário, em versos de esperança e de angustia, de alegria e tristeza, cantam por vocação e por necessidade.
Às quatro da manhã, ainda não tinha rompido a bela aurora, uma voz perdida inicia um canto mavioso:
Mulheres embiocadas em lenços de algodão ouvem as estrofes dos seus homens e acompanham-nos em surdina. Desde Ficalho, ao rés da raia, até à linda vila de Moura, Pias, Santo Aleixo da Restauração, Castro Verde, Amareleja e Aldeia Nova de São Bento, os camponeses cantam o seu destino vário, em versos de esperança e de angustia, de alegria e tristeza, cantam por vocação e por necessidade.
Às quatro da manhã, ainda não tinha rompido a bela aurora, uma voz perdida inicia um canto mavioso:
Já lá vai a nau prás Indias
Já lá vão os navegantes…
Já lá vão os navegantes…
É um poema de harmonia a música desta moda. No silêncio perfeito da madrugada responde o rancho de almocreves, em companhia de duas puras vozes femininas:
Choram as mães pelos filhos
E os filhos pelas amantes….
Quebra o enguiço do calor, que toda a tarde durou, o bruxedo das cantigas. Dá vontade de chorar e de sorrir, ao mesmo tempo. O cante alentejano ouvido pela telefonia perde, porém, quase toda a sua grandeza épica. Aqui, sim, na própria raiz donde a sensibilidade se transfigura e desentranha em vida fulgurante, se evolam para o espaço e entram direitinhos no coração do povo os castos versos do amor e da saudade:
Dei um ai entre dois montes
Responderam-me as montanhas
Ai de mim que já não posso
Sofrer de ânsias tamanhas…
Terras de Serpa ao luar! Serpa bebendo água nas lágrimas cetinosas so rio Guadiana! Serpa dos restolhos e dos olivedos, Serpa das grandes lavouras, das rimas inesperadas e dos poetas – que vais cantar amanhã?
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Havia já uns anos que tanto eu como minha irmã tinha-mos saído de Serpa, à que regressávamos pelo menos 3 vezes por ano. Em mim as saudades ainda apertavam e no calor da emoção respondi assim, à pergunta feita no livro pelo escritor:
Amanhã ou noutro dia
Se os seus filhos vão para longe
E com eles a alegria!
Ao terminar de ler o meu pai agarrou-se a mim e ambos choramos, eu porque sentia de facto a quadra que escrevera, meu pai porque sentia na pele a ausência das suas filhas, ambas a trabalhar em Lisboa. Nunca mais me esqueci dos olhos do meu pai cheios de lágrimas e depois da sua morte trouxe para minha casa o livro que até hoje me acompanha.
Hoje ao transcrever aqui estas belas páginas é na intenção de as dedicar aos meus amigos: Xica que me vai mandando fotos da “minha Serpa”, Manuel Gudelha, porque sei ser este um dos seus livros preferidos e ao meu amigo Shark, que adoptou Serpa como sua terra, tanto bem lhe quer.
É assim que hoje me sinto, nostalgica, depois de ter feito ontem, uma visita rápida a Serpa.
Hoje ao transcrever aqui estas belas páginas é na intenção de as dedicar aos meus amigos: Xica que me vai mandando fotos da “minha Serpa”, Manuel Gudelha, porque sei ser este um dos seus livros preferidos e ao meu amigo Shark, que adoptou Serpa como sua terra, tanto bem lhe quer.
3 comentários:
Verdadeiramente belo, emocionante e....... não tenho palavras, depois do misto de sentimentos aflorados pela escrita, a tua e a do autor do livro.
Nos olhos fica o brilho das lágrimas incontidas da emoção forte.
Susete, Serpa é, mas Serpa também se faz, pelas mãos de grandes homens como o que lá temos a trabalhar.
Besitos Amiga
Susete, esqueci de te dizer que a moda referida no texto " Ó Serpa, pois tu não ouves....", é a minha preferida e cantada pelos grupos corais de Serpa, é algo de indescrítivel.
E eu não sei amiga, Serpa de hoje não tem nada aver com a Serp de hoje e por muito que queiram negar só um homemcom a visão e a sensibilidade do João Rocha conseguia alterar o que havia para alterar manter o que é pra manter e dar a voltacultural que hoje se vê.
Mas é o que tu dizes Serpa é e será sempre uma linda terra.
Beijinhos
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